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segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Foi dito muitas vezes entre as duas que a existência de vida na Terra estava justificada, mesmo levando em conta todo sofrimento. Alguma coisa teria sido responsável pela reparação, ainda que um dia fosse uma, um dia fosse outra. Ida, no dia 4 de abril de 2007, estava totalmente convencida que essa coisa era a Capela Sistina.
Ida disse à Volta:
Amor; não tenha medo.
No dia anterior, Ida lera em uma revista de neurociência que A Separação entre a Luz e as Trevas ocultava uma sugestão anatômica; o queixo de Deus, que vemos por baixo, está acrescido de uma deformidade; sobrepondo essa deformidade ao mapa do cerebelo haveria um ajuste perfeito.
Volta estava cansada, o suor de um dia inteiro lhe emplastava os cabelos ondulados, e seus olhos se injetaram enquanto ela quebrou o vidro do espelho com o candelabro de ferro maciço. É possível que ela o fizesse de qualquer maneira, mesmo sem ouvir a palavra Deus, que nos lábios de Ida lhe soava particularmente ofensiva. 
Volta sabia que a coisa não era a Capela Sistina; a coisa era o amor, mas ela guardou para si esse conhecimento, amando Ida, estranhamente.
Ida disse à Volta em 13 de janeiro de 2009:
- Acho que não vale a pena, mesmo. Não existe uma compensação razoável pra dor do mundo.
Volta estava cansada com os cotovelos apoiados sobre a mesa e tragou o cigarro longamente. A essa altura ela havia esquecido da palavra amor, embora não do sentimento, isto é, ela havia refinado o sentimento ao extremo, e ficou calada, enigmaticamente, à maneira dos santos.
Anos mais tarde as duas participaram de uma cerimônia pagã em uma colina perto de Nápoles na Itália; vestindo mantos de seda vermelha todos os iniciados se reuniam em um círculo ao redor da pira e o cálice era passado em sentido anti-horário.
Ida sussurrou à Volta:
A coisa está nesse cálice, mas não é seu líquido.